É possível trabalhar em dois cargos públicos ao mesmo tempo? A Constituição Federal diz que a regra é não ser possível, mas estabelece as condições (requisitos) para que se admita, excepcionalmente, a acumulação de cargos públicos.
Você encontra essa previsão no art. 37, XVI da Constituição Federal de 1988, o qual está redigido da seguinte forma:
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
Agora que você já conhece o que diz literalmente a nossa Constituição, vamos destrinchar essas informações.
Em primeiro lugar, para que se admita a acumulação de cargos públicos é necessário haver “compatibilidade de horários”. Significa que o servidor deve conseguir cumprir com suas obrigações de maneira adequada em ambos os cargos.
Em segundo lugar, mesmo que haja compatibilidade de horários a acumulação depende da “natureza” do cargo. A Constituição diz que é possível acumular:
(i) dois cargos de professor e
(ii) dois cargos privativos de profissionais de saúde (com profissões regulamentadas), e além disso admite também a
(iii) acumulação de um cargo de professor com um cargo de natureza técnica ou científica.
Fora dessas hipóteses, mesmo que haja a tal compatibilidade de horários, não será possível a acumulação.
Só que a questão não é tão simples assim, e é muito comum que os servidores tenham dúvidas relevantes sobre a acumulação de cargos. Selecionamos as 4 principais para tratar nesse texto.
1. O que significa “compatibilidade de horários”?
Pode parecer simples, mas é bastante comum que alguns servidores tenham problemas na hora de comprovar a compatibilidade de horários.
Em regra, os cargos privativos de profissionais de saúde possuem uma carga horária de 20 ou 30 horas semanais, e muitas das vezes essa carga horária é cumprida em regime de plantões. Isso possibilita que o servidor consiga se organizar com certa tranquilidade para cumprir a jornada de trabalho dos dois cargos.
É comum o caso de pessoas que são concursadas na área da saúde em Goiânia, Goiás, e no Distrito Federal, o que é possível graças ao regime de trabalho em escala de plantão desses servidores.
Os professores, por outro lado, costumam ter uma carga horária variável, em regra entre 20 e 40 horas semanais. Como o trabalho em sala de aula permite essa variação, existem professores que dão aula somente no período da manhã, outros no período da tarde, e outros no período da noite, podendo ainda trabalhar em dois períodos ou mais, a depender da carga horária.
Quando o servidor acumula dois cargos de professor, a compatibilidade de horários será aferida também quando não houver choque nos horários de aula, o que o professor normalmente consegue organizar dentro da direção das escolas em que ele trabalha.
Já quando o professor acumula o magistério com um cargo técnico ou científico a situação pode ser um pouco mais delicada, pois esses cargos costumam exigir carga horária de 30 ou 40 horas semanais, e cumprimento de um horário de expediente (o famoso horário comercial) nas repartições públicas.
Nesse caso, o servidor terá que encaixar as aulas nos horários em que ele não estará cumprindo as funções do outro cargo, sem muita possibilidade de adequação, sob pena de não haver a compatibilidade de horários.
Mas, por fim, há uma questão a ser ressaltada: existe um limite objetivo de carga horária semanal que o servidor não pode ultrapassar? Ou, em outras palavras, é possível presumir a incompatibilidade de horários se a carga horária semanal ultrapassar uma determinada quantidade semanal?
Embora a Constituição não diga nada a respeito, e nem sugira a existência desse limite objetivo, durante um certo tempo a Advocacia-Geral da União entendia que não haveria compatibilidade de horários se a carga horária acumulada superasse 60 horas semanais (Parecer GQ-145).
Sendo assim, acumulações que resultassem numa carga horária de 70 ou 80 horas semanais deveriam ser consideradas acumulações ilícitas, ainda que o servidor comprovasse a compatibilidade de horários na prática.
Esse entendimento, no entanto, foi superado, muito em razão de diversas decisões judiciais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, que reconhecem não haver uma presunção de incompatibilidade de horários.
A verificação da compatibilidade deve ser feita caso a caso e o servidor deverá sempre ter a oportunidade de demonstrar que conseguem cumprir as funções de ambos os cargos satisfatoriamente.
2. O que são profissões regulamentadas?
A Constituição diz que é possível acumular cargos privativos de profissionais de saúde, “com profissões regulamentadas”.
O que, então, seriam essas profissões regulamentadas?
É verdade que a maioria das profissões de saúde estão dentro desse conceito, de modo que nem sempre essa questão chega a ser um problema. Médicos, Enfermeiros, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Biomédicos e etc., todos são considerados profissões regulamentadas.
O que elas têm em comum? Duas coisas, em resumo: uma lei que regulamenta a profissão, e conselho de fiscalização profissional.
Existem alguns profissionais que atuam na área da saúde, mas que não possuem uma lei que regulamenta a função, e não possuem também um conselho de fiscalização profissional. Exemplo disso é o cargo de “Auxiliar de Laboratório” no Estado de Goiás.
A Procuradoria-Geral do Estado de Goiás já fixou o entendimento de que o cargo de Auxiliar de Laboratório não é privativo de profissional de saúde, com profissão regulamentada, de modo que não pode ser acumulado.
Portanto, é necessário cuidado: nem todos os cargos ou funções na área da saúde poderão ser acumulados.
3. Como saber se um cargo é “técnico” ou “científico” na hora de acumular cargos públicos?
Os professores possuem duas opções de acumulação autorizadas pela Constituição. Eles podem acumular dois cargos de professor, ou podem acumular um cargo de professor com um cargo “técnico ou científico”.
E o alerta importante é que, por óbvio, nem todos os cargos serão técnicos ou científicos.
Existem decisões dos Tribunais Superiores que dão algumas diretrizes para que se possa identificar se um cargo é técnico ou científico, e, por consequência, se esse cargo pode ser acumulado com um cargo de professor.
A primeira diretriz estabelecida é a de que o cargo pode ser técnico ou científico, ainda que a escolaridade exigida para o seu exercício não seja curso superior. Cargos de nível médio podem ser considerados técnicos ou científicos, e cargos de nível superior podem não ser considerados técnicos ou científicos.
A segunda diretriz, que decorre logicamente da primeira, é que as atribuições do cargo (deveres e responsabilidades) é que irão definir se o cargo é técnico ou científico.
Segundo decisão do Superior Tribunal de Justiça, “não basta que a denominação ou nomenclatura do cargo contenha o termo ‘técnico’: o que importa é que suas funções, por serem específicas, se diferenciem das meramente burocráticas e rotineiras” (RMS n. 54.203/MG, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 15/8/2017, DJe de 12/9/2017), e “o cargo de médico possui natureza científica, por pressupor formação em área especializada do conhecimento, dotada de método próprio” (RMS n. 39.157/GO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 26/2/2013, DJe de 7/3/2013).
Ou seja, pouco importa qual o nível de escolaridade exigida pelo cargo, mas sim as atribuições do servidor no exercício do cargo. Se o exercício do cargo não exige qualquer conhecimento específico, muito provavelmente ele não será técnico e nem científico.
Na prática, duas dicas ajudam na identificação de cargos técnicos ou científicos.
Primeiro: independentemente do nível de escolaridade, se houver a exigência de uma formação específica para a posse no cargo, será considerado técnico ou científico.
Se, por exemplo, em um determinado órgão com competências relacionadas a urbanismo (aprovação e fiscalização de obras no Município) existem servidores que são formados em Engenharia e/ou Arquitetura, tendo sido tais formações exigidas para a posse, esses cargos certamente serão considerados técnicos e/ou científicos.
Da mesma forma, cargos privativos de bacharéis em Direito também podem ser considerados técnicos ou científicos.
Nesses casos, considerando a exigência de uma formação específica para o exercício das funções do cargo, já se presume que ele se encaixa no conceito de cargo técnico ou científico.
Segundo: se o cargo não exigir uma formação específica, daí será necessário avaliar quais as atribuições específicas do cargo. Assim, se para a posse se exige, por exemplo, apenas a comprovação de conclusão do ensino médio, ou admite qualquer curso superior, é provável que não seja um cargo técnico ou científico.
Vai depender, nesse caso, das atribuições definidas em lei para que seja possível afirmar ser o cargo técnico ou científico, o que torna a análise bastante mais difícil e abstrata.
É necessário muito cuidado nesse ponto, pois responder se um cargo é técnico ou científico é, possivelmente, uma das análises mais delicadas quando o assunto é acumulação de cargos públicos.
4. Quais as consequências de acumulação de cargos públicos indevida?
Se o servidor estiver em acumulação ilícita de cargos públicos, é evidente que existem as sanções legais para essa situação. Essas sanções, e a forma como se chegam a elas, podem variar em cada ente federativo, que detém a prerrogativa de editar suas leis sobre o regime jurídico dos servidores públicos, mas elas seguem, em maior ou menor medida, aquilo que dispõe a legislação federal.
Sendo assim, detectada a acumulação ilícita de cargos públicos, o servidor será notificado para, dentro do prazo estipulado, informar se opta por se exonerar de um dos cargos, ou se pretende defender a possibilidade de acumulação.
Caso o servidor faça a opção por um dos cargos, em regra o assunto se encerrará.
Por outro lado, optando o servidor por defender a acumulação, ele ficará sujeito à pena de demissão, se não conseguir convencer a Administração Pública de que os cargos são acumuláveis.
Além disso, a Administração poderá ainda verificar se houve algum prejuízo ao erário, caso se constate que o servidor, de algum modo, não cumpriu adequadamente a sua carga horária e mesmo assim recebeu sua remuneração como se estivesse exercendo adequadamente seu trabalho.
O servidor pode vir a ser notificado para restituir os valores recebidos indevidamente.
E, por fim, existem, de novo, duas informações importantes sobre a acumulação ilícita que muitos servidores não sabem:
Primeiro, se a acumulação ilícita for descoberta a qualquer tempo, a Administração Pública pode acionar o servidor.
Não há prescrição/decadência com relação à possibilidade de a Administração Pública corrigir uma situação de acumulação ilícita de cargos, ainda que o servidor esteja há 10, 20 ou 30 anos acumulando.
Isso vale até mesmo se o servidor já estiver aposentado em um dos cargos ou nos dois cargos, pois a aposentadoria não faz com que a acumulação deixe de ser ilícita.
Segundo, o servidor que acumulou cargos ilicitamente pode averbar seu tempo de contribuição em outro regime de previdência. Assim, se o servidor acumulou cargos ilicitamente por 20 anos, ele poderá se exonerar de um dos cargos e averbar o tempo de contribuição no INSS para garantir uma segunda aposentadoria.
Conclusão
Deu pra perceber que concluir pela possibilidade de acumulação de cargos é, por vezes, difícil e complexo. Sendo assim, é recomendável ao servidor que consulte um especialista antes de acumular, para se certificar, na maior medida possível, de que não estará acumulando fora das hipóteses permitidas pela Constituição.
Se o servidor já acumula e não sabe se está em uma situação irregular, ou se já até recebeu uma notificação para optar por um dos cargos, a análise de um profissional é ainda mais relevante, especialmente se for possível defender a acumulação.